A construção de diálogos indeléveis na teledramaturgia e no cinema é a artimanha mais desafiadora do artesão das palavras; e o silêncio, tão escasso na vida contemporânea, revela-se cada vez mais necessário para contrastar e chamar atenção. É esta a busca do jornalista e roteirista George Moura que, na última terça-feira (18), presidiu uma palestra online, no YouTube, idealizada pelo Centro de Crítica da Mídia (CCM). A atividade fez parte nas comemorações do cinquentenário da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA) e foi mediada por Pedro Vaz Perez, professor nos cursos de Jornalismo e Cinema.
O que me tornou roteirista não foi uma novela nem foi um filme do super-homem. Por exemplo, quando eu vi ‘O Enigma de Kaspar Hauser’, do Herzog, eu disse ‘nossa senhora! Eu quero fazer uma coisa assim’. Acho que nunca consegui. Mas pelo menos o desejo da busca era o desejo de causar esse estranhamento, essa perturbação ou essa ampliação do horizonte do olhar do expectador.
George Moura
Quem é George Moura?
Formado em Jornalismo pela PUC-Campinas e com mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), George Moura sempre quis se enveredar pelos caminhos da arte. “Eu fiz o curso de Jornalismo, mas sempre com um desejo de entrar para a ficção”. Nesse sentido, em 1996, aceitou um convite do diretor Luiz Fernando Carvalho para integrar a equipe da novela “O Rei do Gado”, e deu os primeiros passos rumo à carreira televisiva, como assistente de direção. “Sempre tive esse desejo de inventar histórias mais do que contar histórias. Mas, quando cheguei a poder inventar histórias, eu já estava, indelevelmente, marcado com a formação de jornalista. Então, hoje em dia, eu tenho uma característica que, antes de qualquer trabalho, eu faço uma pesquisa”.
Acho que jornalista que eu trago dentro de mim, e ele tá dentro de mim nessa escrita, mas a busca da ficção é de uma outra ordem. É da ordem da fabulação a partir da realidade e não do retrato da realidade.
George Moura
Moura discutiu a gramática televisiva e como ela tende a ser mais verborrágica em contraposição ao silêncio que tenta empreender em suas narrativas. “Eu tenho a sensação que a televisão, cada vez mais, foi virando um eletrodoméstico que fala. E, talvez até mesmo pela herança do rádio como linguagem, ela tem uma tendência de que tudo seja dito, porque parece que ela precisa ser compreendida até mesmo quando você tá de costas, que de certa forma é uma negação do conceito de imagem”. Como consequência, de acordo com o autor, “todas as palavras vão ficando, de alguma maneira, desgastadas” e, tomando dois grandes poetas como parâmetro, brinca: “sem querer me comparar a eles, eu sou, para a escrita do roteiro, mais para João Cabral [de Melo Neto] e menos para Fernando Pessoa, nesse sentido do tirar, do enxugamento”.
O bom é já ter escrito. Agora, escrever mesmo é uma agonia sem fim. Faço isso porque gosto. Não que não me doa, me dói muitas vezes. Às vezes também me da muita alegria.
George Moura
A linguagem televisiva
Ao ser indagado sobre as diferenças de escrever para cinema, TV e streaming, George Moura categorizou como dinâmicas diferentes que trazem resultados e experiências distintas. “São brincadeiras legais, é como jogar futebol e pular corda. Eu me divirto com todas elas. É como escrever prosa ou escrever poesia: talvez cinema seja poesia e televisão seja prosa. Mas todos se irmanam na literatura e no audiovisual”. Especificou, ainda, um mecanismo da televisão que controla a sincronia entre som e ações que, ao seu ver, funciona como metáfora para as distinções entre linguagens. “Do ponto de vista técnico, a televisão, no seu processo de transmissão, tem um componente regulador que não deixa a música ir muito alta e, se tem o silêncio, ela sobe o ruído do silêncio porque ela teme que o sinal saia do ar. Então, no processo de transmissão, ela faz um achatamento que a sala de cinema não tem – você pode ter uma música alta e pode ter o silêncio absoluto.” |
O pernambucano também destacou a importância de boas parcerias, sobretudo entre diretor e roteirista, que implicam diretamente no sentimento de satisfação plena dos projetos. “Você não se realiza como roteirista só escrevendo roteiros. Você se realiza como roteirista quando acha que fez um bom roteiro e quando ele se realiza sendo um bom filme”. José Luiz Villamarim é um grande parceiro de George, tendo dirigido várias obras assinadas por ele, como “O Canto da Sereia” (2013), “Redemoinho” (2017) e “Onde Nascem os Fortes” (2018).
A gente escreve pra ser visto, e escreve pra ser lido. Não escreve pra ficar num pedestal inalcançável.
George Moura
George Moura comentou ainda sobre a dificuldade de não se repetir em um ofício onde praticamente tudo já foi inventado; agora, o grande obstáculo é inovar quanto às formas de contar o que já foi contado. Segundo ele, “o desafio de não se repetir é um desafio permanente, angustiante e que tira o sono”.
Além disso, falou sobre mecanismos de pesquisa baseados em algoritmos que objetivam prever as vontades do público e pautar as produções audiovisuais. A respeito disto, opinou: “eu acho que o grande lance do artista é ele ofertar o que o expectador não sabe que quer. Se ele se pauta pelo algoritmo e pela pesquisa é aquela coisa, você vai pro cavalo e da capim, capim, capim. E quando você pergunta ‘ o que é que você quer, cavalo?’ o cavalo diz ‘capim’.”
A dramaturgia não é uma cartilha moral de procedimentos e de condutas. A dramaturgia é uma tentativa de lançar luz sobre as trevas humanas, sobre os desejos não ditos, sobre os desejos interditos, sobre o que não temos coragem de falar. E, por isso ela retrata pessoas sublimes e pessoas monstruosas.
George Moura
Autor de grandes sucessos na televisão e no cinema nacional – dentre eles “Amores Roubados” (2014), “O Rebu” (2014), “Linha de Passe” (2008), “Getúlio” (2014) e “O Grande Circo Místico” (2018) – George Moura passou por redações do Fantástico e do extinto Linha Direta, que misturava jornalismo com ficção. Além disso, idealizou o especial Por Toda a Minha Vida, que lhe rendeu seis indicações consecutivas ao International Emmy Awards por fazer uma espécie de docudrama biográfico de personalidades como Renato Russo, Chacrinha e Mamonas Assassinas.
A gente tem que, com a arte, sensibilizar as pessoas. Porque, sensibilizadas as pessoas, elas não suportam nem monstros nem ditadores. Então acho que essa é a nossa posição. Precisamos ser sempre inquietos em busca, não da verdade, mas da sensibilização das pessoas.
George Moura
Onde está meu coração
No dia 4 de maio, entrou para o catálogo do Globoplay a minissérie “Onde Está Meu Coração”, escrita por George Moura e Sergio Goldemberg, com direção de Luisa Lima. A trama conta a história de Amanda (Letícia Colin), uma médica que, apesar de consciente a respeito do uso de drogas, acaba se viciando em crack. O elenco é composto ainda por Fábio Assunção, Mariana Lima, Daniel de Oliveira e outros grandes nomes da teledramaturgia nacional. Durante a palestra, George comentou que tem recebido bastante feedback do público. “Eu recebi o relato de uma pessoa que disse que tem uma prima com essa mesma questão, de uma classe abastada, que tava com uma dependência especificamente também de crack e que assistiu junto com a irmã. Ao final da série, ela decidiu ir se internar. A obra de arte não é feita para isso, mas é feita para isso também.” |
Sobre novos projetos, o autor revelou que está trabalhando em um longa-metragem e em uma série de 50 capítulos para o Globoplay, plataforma de streaming da Globo. O filme é baseado no livro “A Crônica da Casa Assassinada”, do mineiro Lúcio Cardoso; e a série é a livre adaptação, para os dias atuais, de quatro peças de Nelson Rodrigues: “A Mulher Sem Pecado”, “Bonitinha, mas Ordinária”, “Os Setes Gatinhos” e “Toda Nudez Será Castigada”.
Trabalhos e oportunidades
Existe fórmula para o sucesso de George Moura? De acordo com o autor, não. O que existe é o resultado de árduo trabalho pautado na insistência de uma vocação precocemente identificada. “Não existe nada que seja feito sem trabalho. O Picasso tem uma história que eu adoro, que dizem que ele foi dar uma entrevista a uma jornalista – já muito famoso – e a jornalista disse: ‘Picasso, realmente você é um artista incrível. Agora, você há de convir que você é uma pessoa de sorte, não é?’. E ele responde: ‘quando a sorte veio estar comigo me encontrou trabalhando’. É exatamente isso. Não tem segredo. Só tem trabalho, trabalho, trabalho.” Falou também a respeito do material bibliográfico disponível para os aspirantes a roteiristas e apontou vantagens e desvantagens dos manuais de escrita. “Não busquem fórmulas. Leiam todos os manuais de roteiro, eu acho que eles têm muita serventia pra gente aprender a gramática. […] Existe ali uma série de dados de linguagem, que você pode até explodir, implodir, fazer diferente. Mas pra fazer diferente você precisa conhecê-las.” E, para completar, aconselhou e deu dicas aos que, como ele, desejam migar do jornalismo para a teledramaturgia. “Em relação às oportunidades, é muito importante ver tudo, ler tudo, assistir muitas coisas e quando for escrever esquecer tudo o que viu e que leu, de alguma maneira. [..] Vai fazendo, vai fazendo, vai botando a cara a tapa. Não só fica no mundo mental não. Porque o mundo mental é muito importante, mas tem uma hora que ele é estéril. Então, é preciso realizar pra se dar o passo adiante.” |
A ideia central é trair para ser fiel.
George Moura
A palestra completa está disponível no canal da FCA:
O texto é uma colaboração do estudante de Jornalismo Carlos Eduardo Noronha, monitor do Centro de Crítica da Mídia.